Escritor, professor, crítico de arte, romântico da era vitoriana e humanista, Ruskin também se mostrava moralista e um defensor de
questões sociais. Se encantava com o pitoresco, com as paisagens do interior e
com a arquitetura do homem comum.
O texto que analisaremos, A Lâmpada da Memória, é o sexto capítulo do livro As Sete Lâmpadas da Arquitetura.(1) Ruskin inicia a sua Sexta Lâmpada com
uma descrição detalhada e romântica da paisagem pitoresca do Jura, província dos
Alpes Franceses, mostrando influência romântica, admiração pelo pitoresco e encantamento
pela beleza da paisagem natural - o Ambiente, e não só a edificação.
Abaixo selecionamos alguns trechos do texto (na ordem de
leitura posta pelo autor) mas deixamos para o final a relação dos seus Aforismos.
“Nós podemos viver sem ela
[arquitetura], e orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela.”(2)
“ ... há dois deveres em
relação à nossa arquitetura nacional cuja a importância é impossível
superestimar: o primeiro, tornar a
arquitetura atual, histórica; e o segundo, preservar, como a mais preciosa de
todas as heranças, aquela das épocas passadas.”(3)
O valor de memória e o valor histórico
são as maiores preocupações de Ruskin na sua luta pela preservação do Patrimônio
Cultural. A importância desses valores aparecerão em diversos trechos do livro.
“... pois é ao se tornarem
memoriais ou monumentais que os
edifícios civis e domésticos atingem uma perfeição verdadeira …”(4)
“... só posso considerar como
um mau presságio para um povo quando suas casas são construídas para durar por
uma geração apenas. Existe uma santidade
na casa do homem de bem que não pode ser renovada em qualquer moradia levantada
sobre ruínas…”(5)
“... a atração de suas mais
belas cidades reside não na riqueza isolada de seus palácios, mas na decoração requintada e cuidadosa das
menores moradias de seus períodos de maior esplendor.”(6)
A valorização da "arquitetura menor" por Ruskin era uma visão
vanguarda. A importância da preservação de edificações feitas pelo homem comum, desvinculadas de um monumento excepcional, só será consolidada na Carta de Veneza de 1964.
“ É preferível a obra mais
rude que conta uma história ou registra um fato, do que a mais rica sem
significado.”(7)
A questão do que Ruskin denomina de conta uma história e sem
significado fica um pouco no ar. Nesta citação não só o valor histórico e memorial é
pertinente mas também o valor de tradição e de identidade.
“Pois, de fato, a maior glória de um edifício não está em
suas pedras, ou em seu ouro. Sua Glória está em sua idade…” (8)
“É naquela mancha dourado do tempo que devemos
procurar a verdadeira luz, a cor e o valor da arquitetura…”(9)
“... o pitoresco é assim
procurado na ruína, e supõe-se que consista na deterioração. Sendo que, mesmo
buscado aí, trata-se apenas da sublimidade das fendas, ou fraturas, ou manchas,
ou vegetação, que assimilam a arquitetura à obra da Natureza, e conferem a ela
aquelas particularidades de cor e forma que são universalmente caras aos olhos
dos homens.”(10)
“o pitoresco ou a sublimidade
extrínseca, terá exatamente essa função, mais nobre nela do que qualquer
objeto: a de evidenciar a idade do edifício – aquilo, que já foi dito,
constitui sua maior glória; e, portanto, os sinais exteriores dessa glória…”(11)
Ruskin considerava a pátina, que ele romanticamente denomina
a mancha dourada do tempo, um valor
inseparável do Monumento Histórico. Ele enxergava essa deterioração natural das
edificações não uma depreciação, mas um dos valores intrínsecos para que a
edificação fosse reconhecida como Monumento Histórico. Alois Riegl (Áustria
1858-1905) em 1903, no seu livro O Culto
Moderno dos Monumentos, definirá esse valor como Valor de Antiguidade.
“Ela [restauração] significa
a mais total destruição que um edifício pode sofrer: [...] uma destruição
acompanhada pela falsa descrição da coisa destruída. [...] é impossível, tão
impossível quanto ressuscitar os mortos, restaurar qualquer coisa que já tenha
sido grandiosa ou bela em arquitetura.”(12)
“ Uma outra alma pode ser-lhe
dada por um outro tempo, e será então um novo edifício; mas o espírito do
artífice morto não pode ser invocado, e intimado a dirigir outras mãos e outros
pensamentos. E quanto à cópia direta e simples, ela é materialmente impossível.
Como se podem copiar superfícies que se desgastaram em meia polegada?…”(13)
“O primeiro passo para a
restauração [...] é despedaçar a obra antiga; o segundo, usualmente, é erguer a
imitação mais ordinária e vulgar que possa escapar à detecção.”(14)
“Mas, diz-se, pode ser
necessária uma restauração! Que seja. Encare tal necessidade com coragem, e
compreenda o seu verdadeiro significado. É uma necessidade de destruição.
Aceite-a como tal, arrase o edifício, amontoe suas pedras e canteiros
esquecidos, transforme-as em cascalho, ou argamassa, se você quiser; mas o faça
francamente, e não coloque uma mentira em seu lugar.”(15)
Esses trechos são críticas severas às restaurações da época
que buscavam a unidade de estilo e cujo os arquitetos clamavam em se colocar no
lugar do construtor primitivo. O francês Viollet Le Duc e também os
conterrâneos de Ruskin, os arquitetos James Wyatt (1747-1830) e Sir George
Gilbert Scott (1811-1878), foram adeptos dessa vertente de restauro.
“cuide bem de seus monumentos,
e não precisará restaurá-los”(16)
“Zele por um edifício antigo
com ansioso desvelo; proteja-os o melhor possível, e a qualquer custo, de todas as ameaças de dilapidação.”(17)
Ruskin julgava ser responsabilidade das comunidades e das
nações a preservação dos Monumentos Históricos já antecedendo a importância da educação patrimonial.
“... não se importe com a má
aparência dos reforços: é melhor uma muleta do que um membro perdido [...]. Seu dia fatal por fim chegará; mas que
chegue declarada e abertamente, e que nenhum substituto desonroso e falso prive
o monumento das honras fúnebres da memória.”(18)
Gustavo Giovannoni no seu Verbete Restauro (que deu origem
a Carta de Atenas) critica essa visão romântica de Ruskin de deixar os monumentos morrerem serenamente.(19) Giovannoni trabalhava com uma teoria intermediária das
teorias antagônicas de Ruskin e Le Duc.
“Eles [os monumentos] não são
nossos. Eles pertencem em parte àqueles que os construíram, e em parte a todas as gerações da humanidade que nos
sucederão.”(20)
Ruskin já considerava a importância da transmissão do trabalho de restauração para as gerações futuras. Essa questão é pertinente em todas as teorias contemporâneas e faz parte
da Introdução da Carta de Veneza de 1964.
“Um
belo edifício sempre vale o terreno sobre o qual foi construído [...] não há jamais qualquer motivo válido para
sua destruição. Se alguma vez chegou a haver, certamente não o será agora,
quando o lugar tanto do passado como do futuro se encontra demasiadamente
usurpado em nossas mentes pelo presente agitado e insatisfeito.”(21)
Ruskin finaliza o seu
texto com essa citação que antecipa uma questão pertinente e problemática até
os dias de hoje nas discussões de Preservação e Restauração do patrimônio edificado: a Especulação
Imobiliária.
Para
finalizarmos o texto, segue abaixo os Aforismos da Lâmpada da Memória.
Aforismo 27: A Arquitetura deve ser feita histórica e
preservada como tal.
Aforismo 28: A santidade do lar, para homens de bem.
Aforismo 29: A terra é um legado inalienável, não uma
propriedade.
Aforismo 30: A maior glória de um edifício está em sua
unidade.
Aforismo
31: A assim chamada Restauração é a pior forma de destruição.
Interessante perceber que o texto A Lâmpada da Memória de Ruskin é romântico e moralista e que durante a
leitura o autor também impõe Aforismos.
Ele considerava que a sociedade era corresponsável pela
Preservação dos Monumentos Históricos e por isso fez textos direcionados não só para
os profissionais, intelectuais e amantes da arte, mas também para a população
de massa que crescia em função da chegada dos novos tempos.
Por Cristiane Py - www.cristianepy.com.br
1- As Sete Lâmpadas da Arquitetura são: Sacrifício,
Verdade, Poder, Beleza, Vida, Memória e Obediência.
2-John Ruskin, A Lâmpada da
Memória, Artes & Ofícios p. 54.
3-Ibidem, p. 55 – grifo nosso.
4-Ibidem, p. 55 – grifo nosso.
5-Ibidem, p. 56 – grifo nosso.
6-Ibidem, p. 60 – grifo nosso.
7-Ibidem, p. 63.
8-Ibidem,, p. 68 - grifo nosso.
9-Ibidem, p. 68 – grifo nosso.
10-Ibidem, p. 77.
11-Ibidem, p. 77.
12-Ibidem,, p. 79.
13-Ibidem, p. 80.
14-Ibidem, p. 80.
15-Ibidem, p. 81.
16-Ibidem, p. 81,82.
17-Ibidem, p. 82.
18-Ibidem, p. 82 – grifo nosso.
19-Gustavo Giovannoni – Textos Escolhidos – Arte & Ofícios, p. 194.
20-John Ruskin, A Lâmpada da
Memória, Artes & Ofícios, p. 83 – grifo nosso.
21-Ibidem, p. 83.
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