segunda-feira, 7 de março de 2016

O Arquiteto, O Pesquisador, O Inspetor, O Restaurador, O Gestor

Viollet Le Duc (França 1814-1879) foi um dos pioneiros a teorizar e trabalhar no campo da restauração. Arquiteto por formação, pesquisador da arquitetura gótica por paixão, Inspetor Geral da Comissão de Artes e Edifícios Religiosos por nomeação e restaurador, Le Duc foi a inspiração para vários profissionais que se iniciavam na área de restauro no final do séc. XIX.
Abaixo citaremos alguns trechos do seu Verbete Restauro (na ordem de leitura posta pelo autor) de forma a analisar alguns princípios definidos por ele.
Restauração, s. F. A palavra e o assunto são modernos. Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento.”(1)
Essa é a famosa e tão criticada definição de restauração de Viollet Le Duc que abre o seu Verbete Restauro no Dictionnaire Raisonné de lÁrchitecture Française.
 Gustavo Giovannoni (Itália 1873-1947), que também escreveu um Verbete sobre Restauro para a Enciclopédia Italiana em 1936, critica abertamente essa visão de Le Duc. Para Giovannoni o método de repristinação adotado por Le Duc conduz ao falso histórico e segue tendências personalizadas(2). Mas Giovannoni reconhece que a teoria de Le Duc abriu caminho, junto com a teoria antagônica de Ruskin, para uma teoria intermediária seguida por ele e por Camillo Boito (Itália 1836-1914).
“O nosso tempo, e somente o nosso tempo, desde o começo dos séculos históricos, tomou, em face do passado, uma atitude inusitada. Quis analisá-lo, compará-lo e formar sua verdadeira história, seguindo passo a passo a marcha, os progressos, as transformações da humanidade.”(3)
Nesse trecho Le Duc consagra o nascimento do Monumento Histórico. Em 1884 em sua conferência em Turim, Camillo Boito discursa reconhecendo em sua época uma grande virtude: reconhecimento do valor em todas as obras de todos os séculos passados sem distinção de estilo.(4)
“Com efeito, para conhecer a história de uma arte, não é suficiente determinar os diversos períodos que trilhou em um dado lugar, é preciso seguir sua marcha em todos os lugares onde ela se produziu, indicar as diversas formas de que se revestiu sucessivamente, e elaborar o quadro comparativo e todas essas diversas formas, confrontando não apenas cada nação,  mas cada província de um mesmo país”(5)
“... admite por princípio que cada edifício ou cada parte de um edifício devam ser restaurados no estilo que lhes pertence, não somente como aparência, mas como estrutura... É, portanto, essencial, antes de qualquer trabalho de reparação, constatar exatamente a idade e o caráter de cada parte, compor uma espécie de relatório respaldado por documentos seguros, seja por notas escritas, seja por levantamentos gráficos.”(6)
“ O arquiteto encarregado de uma restauração deve, pois, conhecer exatamente não somente os tipos referentes a cada período da arte, mas também os estilos pertencentes a cada escola.”(7)
Profundo pesquisador da arquitetura medieval, vemos, nas citações acima, que Le Duc considerava imprescindível uma pesquisa aprofundada e detalhada sobre a história, o estilo e a técnica referente a edificação a ser restaurada antes de iniciar-se qualquer intervenção. Essa preocupação com uma documentação aprofundada será base do restauro filológico adotado posteriormente pelos italianos Boito e Giovanonni.
No início da segunda citação, referente a questão de unidade de estilo ... admite por princípio que cada edifício ou cada parte de um edifício devam ser restaurados no estilo que lhes pertence...”  não é considerada, segundo o artigo 11o da Carta de Veneza (1964),  uma finalidade a se alcançar. Max Dvořák (Áustria 1874-1921) considerava que a predileção por um estilo, era duplamente nefasta para a preservação do monumento, pois consideravam os outros estilos como um equívoco ou falta de gosto e descartava todos os acréscimos existentes de outras épocas  que fugiam do estilo original.(8)
“..agir em razão das circunstâncias particulares. Quais são essas circunstâncias particulares? Não poderíamos indicar todas; será suficiente assinalar algumas entre as mais importantes, a fim de ressaltar o lado crítico do trabalho.”(9)
            A questão da crítica no trabalho de restauração já havia sido citado por Le Duc em referência a trabalhos realizados na Itália e na Espanha(10). O Restauro Crítico, teoria subsequente do restauro filológico, começará a ser discutido no pós guerra e só será consolidado com a Carta de Veneza de 1964. Essa nova vertente vai inserir e valorizar uma leitura estética e não só documental no Patrimônio Cultural.
“Antes de mais nada, antes de ser arqueólogo, o arquiteto encarregado de uma restauração deve ser um construtor hábil e experimentado, não somente do ponto de vista geral, mas do ponto de vista particular; isto é, deve conhecer os procedimentos de construções admitidos nas diferentes épocas de nossa arte e nas diversa escolas.”(11)
            A formação do Arquiteto já era uma preocupação para Le Duc. Só na segunda década do séc. XX é que será criada, com o apoio de Gustavo Giovannoni, em Roma na Itália, a primeira Escola Superior e posterior Faculdade de Arquitetura ligada a Universidade La Sapienza. Giovannoni introduziu, desde o primeiro ano de sua criação, a disciplina Restauro como obrigatória. Ele se preocupava não só com a formação do arquiteto para trabalhar no campo do Restauro mas também com a sua formação teórica e humanística tão presente nas teorias de Ruskin(12)
“Deve-se portanto pensar duas vezes quando se trata de completar partes faltantes em um edifício da idade média e estar bastante imbuído da escala admitida pelo construtor primitivo.”(13)
O desenvolvimento do projeto de restauração se colocando no lugar do construtor primitivo é um dos conceitos mais criticados nas teorias de Viollet Le Duc.
“Nas restaurações, há uma condição dominante que se deve ter sempre em mente. É a de substituir toda parte retirada somente por materiais melhores e por meios mais eficazes ou mais perfeitos. É necessário que o edifício restaurado tenha no futuro, em consequência da operação a qual foi submetido, uma fruição mais longa do que a já decorrida.”(14)
A preocupação em remeter e transmitir o trabalho de restauração para as gerações futuras é seguida por todas as vertentes contemporâneas da teoria da restauração. Max Dvořák dizia a esse respeito: “A restauração não deve jamais ser um fim em si mesma, mas deve significar um meio de assegurar aos monumentos sua integridade e seu efeito, conservando-o piedosamente para as futuras gerações.”(15) Na introdução da Carta de Veneza de 1964 temos: “A humanidade, cada vez mais consciente da unidade de valores humanos, as considera [as obras monumentais], um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de transmiti-las na plenitude de sua autenticidade.(16)

“A natureza dos materiais, a qualidade das argamassas, o solo, o sistema geral da estrutura [...] a maior ou menor elasticidade da alvenaria, constituem temperamentos diferentes.”(17)
O conhecimento técnico referente aos materiais presentes no Monumentos Históricos e os a serem utilizados na obra de restauro é outra questão já pertinente na teoria leduciana.
“O arquiteto nesses casos difíceis que se apresentam com frequência durante as restaurações, deve ter previsto tudo, até os efeitos mais inesperados, e deve ter de reserva, sem pressa e sem inquietação, os meios de prevenir as consequências desastrosas.”(18)
Trabalhar sobre um preexistente não é o mesmo que executar uma nova edificação. A prática na área demonstrava isso para Le Duc.
“ Foi nos canteiros de restauração que as indústrias da serralheria fina forjada, das fundições de chumbo trabalhada, da marcenaria, compreendida com uma estrutura própria, da vidraria artística, da pintura mural, se ergueram do estado de abatimento em que caíram no começo do século.”(19)
“longe de encontrar todos os recursos que os grandes centros fornecem, tiveram [os arquitetos] de criar, formar operários, estabelecer métodos regulares, seja como contabilidade, seja como modo de conduzir canteiros.”(20)
Viollet Le Duc já reconhecia a importância de se trabalhar com uma mão de obra especializada e da importância da formação dos profissionais técnicos que trabalhariam no canteiro de obras.
“A escola de arquitetura estabelecida em Paris, e estabelecida somente em Paris, preocupa-se com coisa completamente diferente, formava laureados para a Academia de França em Roma, bons desenhistas, alimentados por quimeras, mas muito pouco apropriados para dirigir um canteiro na França do século XIX.”(21)
Mais uma vez, Le Duc questiona a formação dos arquitetos e da centralização da academia. Ele também considerava a centralização do órgão gestor dos restauros da França um problema a ser superado.
“... no entanto não tardaram a reconhecer [os arquitetos] que quanto mais os trabalhos que mandavam executar se encontrassem em localidades isoladas, mais a influência benéfica desses trabalhos se faria irradiar, por assim dizer.”(22)
A participação da sociedade local em uma obra de restauro já é vista por Le Duc de forma positiva. A valorização do Patrimônio Histórico pela sociedade em que ele está inserido é um item fundamental para sua percepção, valorização e conservação. O papel da Educação Patrimonial de jovens e crianças é um dos itens integrantes da Carta de Atenas de 1931.
“... o melhor meio para conservar um edifício é encontrar para ele uma destinação. É satisfazer tão bem todas as necessidades que exige essa destinação, que não haja modo de fazer modificações.”(23)
            Vemos nesse trecho que o arquiteto já considerava a questão do uso do Patrimônio Histórico um item fundamental para a sua preservação. No artigo 5o da Carta de Veneza temos: “A Conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil a sociedade…”(24)
“... o melhor a fazer é colocar-se no lugar do arquiteto primitivo e supor aquilo que ele faria se, voltando ao mundo, fossem a ele colocados os programas que nos são propostos.”(25)
            Mais uma vez Le Duc cita a questão tão criticada sobre: colocar-se no lugar do arquiteto primitivo. Nesse trecho ele destaca a importante questão dos programas impostos pela mudança de uso e pelas adequações das técnicas modernas, de conforto e de salubridade.
“... A fotografia, que a cada dia assume um papel mais sério nos estudos científicos, parece vir a propósito para ajudar nesse grande trabalho de restauração  dos edifícios antigos ”(26)
            Um levantamento meticuloso da obra era uma das questões mais defendidas na teoria leduciana. Ele encontrou na fotografia um instrumento de registro fidedigno para os  remanescentes dos Monumentos Históricos antes e durante a obra de restauro. A questão documental num projeto de restauro é, como dissemos acima, a base do restauro filológico seguido por Boito e Giovannoni.
“...decidir sobre uma disposição a priori sem se cercar de todas as informações que devem comandá-las, é cair na hipótese, e nada é tão perigoso quanto a hipótese em trabalhos de restauração.”(27)
Essa citação pertence aos trechos finais do Verbete Restauro. Curioso compará-la ao primeiro trecho que abre o verbete e as obras práticas de restauro realizadas por Viollet Le Duc, mas a intenção desse trabalho não é tirar conclusões e nem realizar críticas.

por Cristiane Py - www.cristianepy.com.br



1-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 29.
2-Gustavo Giovannoni – Textos Escolhidos, Arte & Ofícios, p. 194, 195.
3-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 32, 33.
4-Camillo Boito, Os Restauradores, Artes & Ofícios.
5-Vitet, nomeado em 1830 Inspector Geral dos Monumentos Históricos, em texto elaborado para a Catedral de Noyon em 1845 – Viollet Le Duc usa algumas de suas palavras como complemento para o seu Verbete - Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 42.
6-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios p. 47 – grifo nosso.
7-Ibidem, p. 48.
8-Max Dvořák, Catecismo da Preservação de Monumentos, Artes & Ofícios.
9-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 49 – grifo nosso.
10-Ibidem, p. 47.
11-Ibidem, p. 49.
12-Gustavo Giovannoni, Textos Escolhidos, Artes & Ofícios.
13-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 54 – grifo nosso.
14-Ibidem, p. 54 – grifo nosso.
15-Max Dvořák, Catecismo da Preservação de Monumentos, Artes & Ofícios, p. 99 – grifo nosso.
16-Carta de Veneza – maio de 1964 – grifo nosso.
17-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 55 .
18-Ibidem, p. 58 – grifo nosso.
19- Ibidem, p. 59.
20-Ibidem, p. 59 – grifo nosso.
21-Ibidem, p. 60,61– grifo nosso.
22-Ibidem, p. 61, 62 – grifo nosso.
23-Ibidem, p. 65 – grifo nosso.
24-Carta de Veneza – maio de 1964.
25-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 65 – grifo nosso.
26-Ibidem, p. 68.
27-Ibidem, p. 69.

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