Viollet Le Duc (França 1814-1879) foi um
dos pioneiros a teorizar e trabalhar no campo da restauração. Arquiteto por
formação, pesquisador da arquitetura gótica por paixão, Inspetor Geral da
Comissão de Artes e Edifícios Religiosos por nomeação e restaurador, Le Duc foi
a inspiração para vários profissionais que se iniciavam na área de restauro no
final do séc. XIX.
Abaixo citaremos alguns trechos do seu Verbete Restauro (na ordem de leitura posta pelo autor) de
forma a analisar alguns princípios definidos por ele.
“Restauração,
s. F. A palavra e o assunto são modernos. Restaurar um edifício não é mantê-lo,
repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter
existido nunca em um dado momento.”(1)
Essa é a famosa e tão
criticada definição de restauração de Viollet Le Duc que abre o seu Verbete Restauro no Dictionnaire Raisonné de lÁrchitecture Française.
Gustavo Giovannoni (Itália 1873-1947), que
também escreveu um Verbete sobre Restauro para a Enciclopédia Italiana em 1936,
critica abertamente essa visão de Le Duc. Para Giovannoni o método de
repristinação adotado por Le Duc conduz
ao falso histórico e segue tendências personalizadas(2). Mas
Giovannoni reconhece que a teoria de Le Duc abriu caminho, junto com a teoria
antagônica de Ruskin, para uma teoria intermediária seguida por ele e por
Camillo Boito (Itália 1836-1914).
“O
nosso tempo, e somente o nosso tempo, desde o começo dos séculos históricos,
tomou, em face do passado, uma atitude inusitada. Quis analisá-lo, compará-lo e
formar sua verdadeira história, seguindo passo a passo a marcha, os progressos,
as transformações da humanidade.”(3)
Nesse trecho Le Duc
consagra o nascimento do Monumento Histórico. Em 1884 em sua conferência em
Turim, Camillo Boito discursa reconhecendo em sua época uma grande virtude:
reconhecimento do valor em todas as obras de todos os séculos passados sem
distinção de estilo.(4)
“Com
efeito, para conhecer a história de uma arte, não é suficiente determinar os
diversos períodos que trilhou em um dado lugar, é preciso seguir sua marcha em
todos os lugares onde ela se produziu, indicar as diversas formas de que se
revestiu sucessivamente, e elaborar o quadro comparativo e todas essas diversas
formas, confrontando não apenas cada nação,
mas cada província de um mesmo país…”(5)
“...
admite por princípio que cada edifício ou cada parte de um edifício devam ser
restaurados no estilo que lhes pertence, não somente como aparência, mas como
estrutura... É, portanto, essencial,
antes de qualquer trabalho de reparação, constatar exatamente a idade e o
caráter de cada parte, compor uma espécie de relatório respaldado por
documentos seguros, seja por notas escritas, seja por levantamentos gráficos.”(6)
“
O arquiteto encarregado de uma restauração deve, pois, conhecer exatamente não
somente os tipos referentes a cada período da arte, mas também os estilos
pertencentes a cada escola.”(7)
Profundo pesquisador
da arquitetura medieval, vemos, nas citações acima, que Le Duc considerava
imprescindível uma pesquisa aprofundada e detalhada sobre a história, o estilo
e a técnica referente a edificação a ser restaurada antes de iniciar-se
qualquer intervenção. Essa preocupação com uma documentação aprofundada será
base do restauro filológico adotado posteriormente pelos italianos Boito e
Giovanonni.
No início da segunda
citação, referente a questão de unidade de estilo “... admite por princípio que
cada edifício ou cada parte de um edifício devam ser restaurados no estilo que
lhes pertence...” não é considerada,
segundo o artigo 11o da Carta de Veneza (1964), uma finalidade a se alcançar. Max Dvořák
(Áustria 1874-1921) considerava que a predileção por um estilo, era duplamente nefasta para a preservação do
monumento, pois consideravam os outros estilos como um equívoco ou falta de gosto e descartava todos os
acréscimos existentes de outras épocas que
fugiam do estilo original.(8)
“..agir em razão das circunstâncias
particulares. Quais são essas circunstâncias particulares? Não poderíamos
indicar todas; será suficiente assinalar algumas entre as mais importantes, a fim de ressaltar o lado crítico do
trabalho.”(9)
A questão da crítica
no trabalho de restauração já havia sido citado por Le Duc em referência a
trabalhos realizados na Itália e na Espanha(10). O
Restauro Crítico, teoria subsequente do restauro filológico, começará a ser
discutido no pós guerra e só será consolidado com a Carta de Veneza de 1964.
Essa nova vertente vai inserir e valorizar uma leitura estética e não só
documental no Patrimônio Cultural.
“Antes
de mais nada, antes de ser arqueólogo, o arquiteto encarregado de uma
restauração deve ser um construtor hábil e experimentado, não somente do ponto
de vista geral, mas do ponto de vista particular; isto é, deve conhecer os
procedimentos de construções admitidos nas diferentes épocas de nossa arte e
nas diversa escolas.”(11)
A
formação do Arquiteto já era uma preocupação para Le Duc. Só na segunda década
do séc. XX é que será criada, com o apoio de Gustavo Giovannoni, em Roma na
Itália, a primeira Escola Superior e posterior Faculdade de Arquitetura ligada
a Universidade La Sapienza.
Giovannoni introduziu, desde o primeiro ano de sua criação, a disciplina
Restauro como obrigatória. Ele se preocupava não só com a formação do arquiteto
para trabalhar no campo do Restauro mas também com a sua formação teórica e
humanística tão presente nas teorias de Ruskin(12)
“Deve-se
portanto pensar duas vezes quando se trata de completar partes faltantes em um
edifício da idade média e estar bastante imbuído da escala admitida pelo construtor primitivo.”(13)
O desenvolvimento do
projeto de restauração se colocando no lugar do construtor primitivo é um dos conceitos
mais criticados nas teorias de Viollet Le Duc.
“Nas
restaurações, há uma condição dominante que se deve ter sempre em mente. É a de
substituir toda parte retirada somente por materiais melhores e por meios mais
eficazes ou mais perfeitos. É necessário
que o edifício restaurado tenha no futuro, em consequência da operação a
qual foi submetido, uma fruição mais
longa do que a já decorrida.”(14)
A
preocupação em remeter e transmitir o trabalho de restauração para as gerações
futuras é seguida por todas as vertentes contemporâneas da teoria da
restauração. Max Dvořák dizia a esse respeito: “A restauração não deve jamais ser um fim em si mesma, mas deve
significar um meio de assegurar aos monumentos sua integridade e seu efeito, conservando-o piedosamente para as futuras
gerações.”(15)
Na introdução da Carta de Veneza de 1964 temos: “A humanidade, cada vez mais consciente da unidade de valores humanos,
as considera [as obras monumentais], um patrimônio comum e, perante as gerações futuras, se reconhece
solidariamente responsável por preservá-las, impondo a si mesma o dever de
transmiti-las na plenitude de sua autenticidade.”(16)
“A
natureza dos materiais, a qualidade das argamassas, o solo, o sistema geral da
estrutura [...] a maior ou menor elasticidade da alvenaria, constituem
temperamentos diferentes.”(17)
O conhecimento
técnico referente aos materiais presentes no Monumentos Históricos e os a serem utilizados na obra de restauro é outra questão já pertinente na teoria leduciana.
“O
arquiteto nesses casos difíceis que se
apresentam com frequência durante as restaurações, deve ter previsto tudo,
até os efeitos mais inesperados, e deve ter de reserva, sem pressa e sem
inquietação, os meios de prevenir as consequências desastrosas.”(18)
Trabalhar sobre um
preexistente não é o mesmo que executar uma nova edificação. A prática na área
demonstrava isso para Le Duc.
“
Foi nos canteiros de restauração que as indústrias da serralheria fina forjada,
das fundições de chumbo trabalhada, da marcenaria, compreendida com uma
estrutura própria, da vidraria artística, da pintura mural, se ergueram do
estado de abatimento em que caíram no começo do século.”(19)
“longe
de encontrar todos os recursos que os grandes centros fornecem, tiveram [os
arquitetos] de criar, formar operários,
estabelecer métodos regulares, seja como contabilidade, seja como modo de
conduzir canteiros.”(20)
Viollet Le Duc já reconhecia a importância de se trabalhar
com uma mão de obra especializada e da importância da formação dos
profissionais técnicos que trabalhariam no canteiro de obras.
“A
escola de arquitetura estabelecida em Paris, e estabelecida somente em Paris, preocupa-se com coisa completamente
diferente, formava laureados para a Academia de França em Roma, bons
desenhistas, alimentados por quimeras, mas
muito pouco apropriados para dirigir um canteiro na França do século XIX.”(21)
Mais uma vez, Le Duc questiona
a formação dos arquitetos e da centralização da academia. Ele também
considerava a centralização do órgão gestor dos restauros da França um problema
a ser superado.
“...
no entanto não tardaram a reconhecer [os arquitetos] que quanto mais os
trabalhos que mandavam executar se encontrassem em localidades isoladas, mais a influência benéfica desses trabalhos
se faria irradiar, por assim dizer.”(22)
A participação da
sociedade local em uma obra de restauro já é vista por Le Duc de forma
positiva. A valorização do Patrimônio Histórico pela sociedade em que ele está
inserido é um item fundamental para sua percepção, valorização e conservação. O
papel da Educação Patrimonial de jovens e crianças é um dos itens integrantes
da Carta de Atenas de 1931.
“...
o melhor meio para conservar um edifício
é encontrar para ele uma destinação. É satisfazer tão bem todas as
necessidades que exige essa destinação, que não haja modo de fazer
modificações.”(23)
Vemos
nesse trecho que o arquiteto já considerava a questão do uso do Patrimônio
Histórico um item fundamental para a sua preservação. No artigo 5o
da Carta de Veneza temos: “A Conservação
dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil a
sociedade…”(24)
“...
o melhor a fazer é colocar-se no lugar do arquiteto primitivo e supor aquilo
que ele faria se, voltando ao mundo, fossem a ele colocados os programas que nos são propostos.”(25)
Mais
uma vez Le Duc cita a questão tão criticada sobre: colocar-se no lugar do arquiteto primitivo. Nesse trecho ele destaca
a importante questão dos programas impostos pela mudança de uso e pelas adequações
das técnicas modernas, de conforto e de salubridade.
“...
A fotografia, que a cada dia assume um papel mais sério nos estudos científicos,
parece vir a propósito para ajudar nesse grande trabalho de restauração dos edifícios antigos …”(26)
Um
levantamento meticuloso da obra era uma das questões mais defendidas na teoria
leduciana. Ele encontrou na fotografia um instrumento de registro fidedigno
para os remanescentes dos Monumentos Históricos
antes e durante a obra de restauro. A questão documental num projeto de
restauro é, como dissemos acima, a base do restauro filológico seguido por
Boito e Giovannoni.
“...decidir
sobre uma disposição a priori sem se
cercar de todas as informações que devem comandá-las, é cair na hipótese, e
nada é tão perigoso quanto a hipótese em trabalhos de restauração.”(27)
Essa citação pertence
aos trechos finais do Verbete Restauro. Curioso compará-la ao primeiro trecho
que abre o verbete e as obras práticas de restauro realizadas por Viollet Le
Duc, mas a intenção desse trabalho não é tirar conclusões e nem realizar
críticas.
1-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 29.
2-Gustavo Giovannoni – Textos Escolhidos, Arte & Ofícios, p. 194, 195.
3-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 32,
33.
4-Camillo Boito, Os Restauradores, Artes & Ofícios.
5-Vitet, nomeado em 1830 Inspector Geral dos Monumentos Históricos, em texto
elaborado para a Catedral de Noyon em 1845 – Viollet
Le Duc usa algumas de
suas palavras como complemento para o seu Verbete - Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc,
Restauração, Artes & Ofícios, p. 42.
6-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios p. 47 –
grifo nosso.
7-Ibidem, p. 48.
8-Max Dvořák, Catecismo da Preservação de
Monumentos, Artes & Ofícios.
9-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 49
– grifo nosso.
10-Ibidem, p. 47.
11-Ibidem, p. 49.
12-Gustavo Giovannoni, Textos Escolhidos, Artes & Ofícios.
13-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 54
– grifo nosso.
14-Ibidem, p. 54 – grifo nosso.
15-Max Dvořák, Catecismo da Preservação de
Monumentos, Artes & Ofícios, p. 99 – grifo nosso.
16-Carta de Veneza – maio de 1964 – grifo nosso.
17-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 55 .
18-Ibidem, p. 58 – grifo nosso.
19- Ibidem, p. 59.
19- Ibidem, p. 59.
20-Ibidem, p. 59 – grifo nosso.
21-Ibidem, p. 60,61– grifo nosso.
22-Ibidem, p. 61, 62 – grifo nosso.
23-Ibidem, p. 65 – grifo nosso.
24-Carta de Veneza – maio de 1964.
25-Eugene Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Artes & Ofícios, p. 65
– grifo nosso.
26-Ibidem, p. 68.
27-Ibidem, p. 69.
Nenhum comentário:
Postar um comentário