quinta-feira, 3 de março de 2016

O Escritor, O Crítico, O Romântico, O Humanista



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John Ruskin (Inglaterra 1819-1900) não era arquiteto e nunca trabalhou com obras de restauro, mas sua paixão pela arquitetura, sua luta pela preservação e suas duras críticas à sociedade capitalista, industrial e materialista o transformaram no principal teórico da preservação do séc. XIX.
Escritor, professor, crítico de arte, romântico da era vitoriana e humanista, Ruskin também se mostrava moralista e um defensor de questões sociais. Se encantava com o pitoresco, com as paisagens do interior e com a arquitetura do homem comum.
O texto que analisaremos, A Lâmpada da Memória, é o sexto capítulo do livro As Sete Lâmpadas da Arquitetura.(1) Ruskin inicia a sua Sexta Lâmpada com uma descrição detalhada e romântica da paisagem pitoresca do Jura, província dos Alpes Franceses, mostrando influência romântica, admiração pelo pitoresco e encantamento pela beleza da paisagem natural -  o Ambiente, e não só a edificação. 
Abaixo selecionamos alguns trechos do texto (na ordem de leitura posta pelo autor) mas deixamos para o final a relação dos seus Aforismos.
“Nós podemos viver sem ela [arquitetura], e orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela.”(2)
“ ... há dois deveres em relação à nossa arquitetura nacional cuja a importância é impossível superestimar: o primeiro, tornar a arquitetura atual, histórica; e o segundo, preservar, como a mais preciosa de todas as heranças, aquela das épocas passadas.”(3)
            O valor de memória e o valor histórico são as maiores preocupações de Ruskin na sua luta pela preservação do Patrimônio Cultural. A importância desses valores aparecerão em diversos trechos do livro.
“... pois é ao se tornarem memoriais ou monumentais que os edifícios civis e domésticos atingem uma perfeição verdadeira ”(4)
“... só posso considerar como um mau presságio para um povo quando suas casas são construídas para durar por uma geração apenas. Existe uma santidade na casa do homem de bem que não pode ser renovada em qualquer moradia levantada sobre ruínas”(5)
“... a atração de suas mais belas cidades reside não na riqueza isolada de seus palácios, mas na decoração requintada e cuidadosa das menores moradias de seus períodos de maior esplendor.”(6)
A valorização da "arquitetura menor" por Ruskin era uma visão vanguarda. A importância da preservação de edificações feitas pelo homem comum, desvinculadas de um monumento excepcional, só será consolidada na Carta de Veneza de 1964.
“ É preferível a obra mais rude que conta uma história ou registra um fato, do que a mais rica sem significado.”(7)
            A questão do que Ruskin denomina de conta uma história e sem significado fica um pouco no ar. Nesta citação não só o valor histórico e memorial é pertinente mas também o valor de tradição e de identidade. 
“Pois, de fato, a maior glória de um edifício não está em suas pedras, ou em seu ouro. Sua Glória está em sua idade (8)
“É naquela mancha dourado do tempo que devemos procurar a verdadeira luz, a cor e o valor da arquitetura”(9)
“... o pitoresco é assim procurado na ruína, e supõe-se que consista na deterioração. Sendo que, mesmo buscado aí, trata-se apenas da sublimidade das fendas, ou fraturas, ou manchas, ou vegetação, que assimilam a arquitetura à obra da Natureza, e conferem a ela aquelas particularidades de cor e forma que são universalmente caras aos olhos dos homens.”(10)
“o pitoresco ou a sublimidade extrínseca, terá exatamente essa função, mais nobre nela do que qualquer objeto: a de evidenciar a idade do edifício – aquilo, que já foi dito, constitui sua maior glória; e, portanto, os sinais exteriores dessa glória”(11)
Ruskin considerava a pátina, que ele romanticamente denomina a mancha dourada do tempo, um valor inseparável do Monumento Histórico. Ele enxergava essa deterioração natural das edificações não uma depreciação, mas um dos valores intrínsecos para que a edificação fosse reconhecida como Monumento Histórico. Alois Riegl (Áustria 1858-1905) em 1903, no seu livro O Culto Moderno dos Monumentos, definirá esse valor como Valor de Antiguidade.
Ela [restauração] significa a mais total destruição que um edifício pode sofrer: [...] uma destruição acompanhada pela falsa descrição da coisa destruída. [...] é impossível, tão impossível quanto ressuscitar os mortos, restaurar qualquer coisa que já tenha sido grandiosa ou bela em arquitetura.”(12)
“ Uma outra alma pode ser-lhe dada por um outro tempo, e será então um novo edifício; mas o espírito do artífice morto não pode ser invocado, e intimado a dirigir outras mãos e outros pensamentos. E quanto à cópia direta e simples, ela é materialmente impossível. Como se podem copiar superfícies que se desgastaram em meia polegada?”(13)
“O primeiro passo para a restauração [...] é despedaçar a obra antiga; o segundo, usualmente, é erguer a imitação mais ordinária e vulgar que possa escapar à detecção.”(14)
“Mas, diz-se, pode ser necessária uma restauração! Que seja. Encare tal necessidade com coragem, e compreenda o seu verdadeiro significado. É uma necessidade de destruição. Aceite-a como tal, arrase o edifício, amontoe suas pedras e canteiros esquecidos, transforme-as em cascalho, ou argamassa, se você quiser; mas o faça francamente, e não coloque uma mentira em seu lugar.”(15)
Esses trechos são críticas severas às restaurações da época que buscavam a unidade de estilo e cujo os arquitetos clamavam em se colocar no lugar do construtor primitivo. O francês Viollet Le Duc e também os conterrâneos de Ruskin, os arquitetos James Wyatt (1747-1830) e Sir George Gilbert Scott (1811-1878), foram adeptos dessa vertente de restauro. 
“cuide bem de seus monumentos, e não precisará restaurá-los”(16)
“Zele por um edifício antigo com ansioso desvelo; proteja-os o melhor possível, e a qualquer custo, de todas as ameaças de dilapidação.”(17)
        Ruskin julgava ser responsabilidade das comunidades e das nações a preservação dos Monumentos Históricos já antecedendo a importância da educação patrimonial.
“... não se importe com a má aparência dos reforços: é melhor uma muleta do que um membro perdido [...]. Seu dia fatal por fim chegará; mas que chegue declarada e abertamente, e que nenhum substituto desonroso e falso prive o monumento das honras fúnebres da memória.”(18)
Gustavo Giovannoni no seu Verbete Restauro (que deu origem a Carta de Atenas) critica essa visão romântica de Ruskin de deixar os monumentos morrerem serenamente.(19)  Giovannoni trabalhava com uma teoria intermediária das teorias antagônicas de Ruskin e Le Duc.
“Eles [os monumentos] não são nossos. Eles pertencem em parte àqueles que os construíram, e em parte a todas as gerações da humanidade que nos sucederão.”(20)
Ruskin  já considerava a importância da transmissão do trabalho de restauração para as gerações futuras. Essa questão é pertinente em todas as teorias contemporâneas e faz parte da Introdução da Carta de Veneza de 1964.
 Um belo edifício sempre vale o terreno sobre o qual foi construído [...] não há jamais qualquer motivo válido para sua destruição. Se alguma vez chegou a haver, certamente não o será agora, quando o lugar tanto do passado como do futuro se encontra demasiadamente usurpado em nossas mentes pelo presente agitado e insatisfeito.”(21)
Ruskin  finaliza o seu texto com essa citação que antecipa uma questão pertinente e problemática até os dias de hoje nas discussões de Preservação e Restauração do patrimônio edificado: a Especulação Imobiliária. 
Para finalizarmos o texto, segue abaixo os Aforismos da Lâmpada da Memória.
Aforismo 27: A Arquitetura deve ser feita histórica e preservada como tal.
Aforismo 28: A santidade do lar, para homens de bem.
Aforismo 29: A terra é um legado inalienável, não uma propriedade.
Aforismo 30: A maior glória de um edifício está em sua unidade.
Aforismo 31: A assim chamada Restauração é a pior forma de destruição.
Interessante perceber que o texto A Lâmpada da Memória de Ruskin é romântico e moralista  e que durante a leitura o autor também impõe Aforismos. Ele considerava que a sociedade era corresponsável pela Preservação dos Monumentos Históricos e por isso fez textos direcionados não só para os profissionais, intelectuais e amantes da arte, mas também para a população de massa que crescia em função da chegada dos novos tempos.


Por Cristiane Py - www.cristianepy.com.br




1- As Sete Lâmpadas da Arquitetura são: Sacrifício, Verdade, Poder, Beleza, Vida, Memória e Obediência.
2-John Ruskin,  A Lâmpada da Memória, Artes & Ofícios p. 54.
3-Ibidem, p. 55 – grifo nosso.
4-Ibidem, p. 55 – grifo nosso.
5-Ibidem, p. 56 – grifo nosso.
6-Ibidem, p. 60 – grifo nosso.
7-Ibidem, p. 63.
8-Ibidem,, p. 68 - grifo nosso.
9-Ibidem, p. 68 – grifo nosso.
10-Ibidem, p. 77.
11-Ibidem, p. 77.
12-Ibidem,, p. 79.
13-Ibidem, p. 80.
14-Ibidem, p. 80.
15-Ibidem, p. 81.
16-Ibidem, p. 81,82.
17-Ibidem, p. 82.
18-Ibidem, p. 82 – grifo nosso.
19-Gustavo Giovannoni – Textos Escolhidos – Arte & Ofícios, p. 194.
20-John Ruskin,  A Lâmpada da Memória, Artes & Ofícios, p. 83 – grifo nosso.
21-Ibidem, p. 83.



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